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Para reviver um pouquinho do Centro visto pelos seus personagens.

06/12/2025 25.35 ºC, São Paulo

Sombras no tempo

Por Norberto Nogueira Jr. * Hoje penso no “Centro” como em uma outra cidade, aonde só se vai por extrema necessidade. No entanto, é fonte de memória e sedução, situado não num espaço, mas num tempo, este sim, difícil de esquecer. Mesmo depois de passar a viver nos bairros da cidade, Pinheiros, Vila Mariana... Voltei muitas vezes ao chamado Centro, principalmente como freqüentador da Biblioteca Mário de Andrade e, confesso, é sempre como voltar à cidade do interior do Estado, de onde vim há 40 anos: um transporte no tempo e, ao mesmo tempo, uma luta ingrata contra a decepção, porque, embora não seja verdade, parece que nunca estive por ali. Claro que muita coisa mudou, mas é uma batalha vã o tentar reconhecer nos edifícios, nos monumentos, naquelas esquinas, minha imagem passando, minha sombra projetada naquelas paredes, meus gestos antigos naquelas mesas... Mais do que tudo, o Centro nos mostra que nós é que passamos. Embora destruído, desleixado e desprotegido, ele continua resistindo a todos nós e, se não formos atentos, devorando-nos como a velha esfinge indecifrada, contemplando o homem, na sua passagem fugaz, de brevidade irritante. Por isso fundamental é recordar, fazer a crônica do passado... Embora eu não me reconheça passando por aquelas ruas, não posso deixar de sentir o coração batendo mais forte quando passo pela Biblioteca Mário de Andrade e, mais à frente, recomponho o bonde ruidoso estacionando na Praça Ramos. E revejo o Mappin, o Teatro Municipal e o Viaduto do Chá, palco de minhas lembranças mais remotas da cidade. Com cinco ou seis anos, caminhando por ali pela mão de meu pai, encantado com a voz cantada do garoto que vendia barbatanas... Quem hoje usa barbatanas no colarinho? Mas aquele som permanece, lá no fundo, brilhante, alegre, paulistano, sobrevoando o viaduto e espalhando-se pelas alturas do Anhangabaú, encobrindo o imbatível Martinelli que eu não me cansava de olhar... Mas volto a meu passado mais recente, à chique Barão de Itapetininga, abstraindo as inumeráveis barracas que a escondem. Ali admiro vitrines, tomo café e sinto saudades da Brasiliense. Em qual de suas travessas ficava a Periquito Verde, lanchonete muito anterior aos McDonald’s impessoais da vida? Domingo à noite, ali era o prazer das vitaminas e lingüiças calabresas, antes do cinema na Avenida São João. Mais além, abre-se a Praça da República. O que me lembra? Novamente sons acordam no fundo da memória e ouço gritos. Agora, nos idos de 60, pela primeira vez: “Abaixo a Ditadura!”. Depois, o Caetano de Campos virou Secretaria da Educação... Quantas vezes professores em greve fizeram ali suas assembléias? Vejo, enfim, que devo voltar ao Centro. Seja pela memória, seja de corpo presente. Cada canto, cada rua, ali, puxam pela lembrança. Fazem a história de cada um. Desmascara-se a incógnita da Esfinge: cada ser sem face que se perde na multidão ganha rosto, cidadão. (22/08/04) * Norberto é professor de literatura e morador de São Paulo há 40 anos.

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