Glória de ser paulistano

História do Brasil, extraterrestes, misticismo, a cidade, picaretagem, roubalheira e sexo, muito sexo. Assim poderiam ser "definidos" os ingredientes da revista em quadrinhos "O Paulistano da Glória", feita a seis mãos por Xalberto, Bira Câmara e Sian.
Era o começo dos anos 80, o clima era de plena turbulência política, com o início da redemocratização. “Havia no ar um lance meio apocalíptico, de ansiedade pela proximidade da passagem do milênio, então pipocava um bando de misticóides fazendo previsões e coisas do gênero”, explica Câmara. “Assisti certa vez a uma entrevista com um desses profetas da época, o coronel Rolim, que falava que São Paulo ia ser a capital do milênio, porque era cortada por quatro rios e cercado por sete colinas e todos os grandes impérios tinham nascido dessa forma -- e mais uma série de teorias malucas em que ele juntava piramidologia, Nostradamus e numerologia. Achei que era o próprio personagem de quadrinhos. Foi onde tudo começou.”
Os três desenhistas, símbolos da resistência do traço underground e udigrúdi no Brasil, demoraram quase 15 anos para terminar a HQ. "Começamos em 82, 83. Não foi antes que isso nem depois. Na época, eu tinha um projeto em mente para fazer uma história ambientada em São Paulo, usando alguns elementos de realismo fantástico. Comentando esse projeto com o Xalberto, descobrimos que ele tinha uma idéia parecida. Então resolvemos juntar as duas coisas”, conta Câmara.
“A minha proposta era ainda mais ambiciosa: eu queria fazer uma ópera-rock em quadrinhos. Ia ser uma união com trilha sonora, para casar com o lançamento de um LP (na época era em LP ainda) de trilhas para cada personagem.”
Depois de certo tempo, os dois perceberam que sozinhos não iam dar conta do serviço. “Era um trabalho para elefante, nem para cavalo. Então chamamos o Sian”, com quem Xalberto já havia trabalhado em "O Balão", primeiro gibi underground dessas paragens.
O projeto foi tocado então a seis mãos. “Fizemos sessões de desenho coletivo e reuniões sobre como conduzir o projeto para manter a unidade. Mas, com todo mundo na fissura para desenhar, em vez de definir tarefas, fizemos uma distribuição de páginas. O Xalberto era a favor dessa organização anárquica, mas teve briga, claro”, diz o quadrinista. “Quando conseguimos terminar o script, o Sian e o Xalberto acabaram se mudando, e a coisa passou a evoluir mais lentamente.”
O resultado foram desenhos totalmente diferentes, e isso irritou Câmara. “Mas depois fiquei mais conformado quando páginas começaram a rodar para a gente interferir. Com isso, as diferenças brutais entre rostos foram diminuindo. No final, o que estava me grilando não incomodou as outras pessoas.”
Uma década e meia mais tarde, ficou pronta a revista. A trama envolve um tiroteio com Adoniran Barbosa, um harém para a realização de um ritual tântrico com o objetivo de salvar São Paulo e um Masp levitando. Masp levitando? “Sim, somos egressos da contracultura, do udigrúdi. Os hippies quiseram fazer o Pentágono levitar. Não conseguiram. Mas nós, aqui no Brasil, fizemos o Masp levitar. Pelo menos no quadrinho”, brinca Câmara.
Ele mesmo explica essa curtição pela cidade que acabou virando personagem: “Eu curto São Paulo ´pacacete´, acho que é uma referência para tudo. O Xalberto, apesar de carioca, sempre viveu aqui. É impossível deixar de gostar de São Paulo. Nos anos 80, o Bixiga era um auê, muito maior do que a gente conseguiu pôr no quadrinho. São Paulo era muito instigante, boca-livre direto. No Riviera a gente ficava sabendo onde estava rolando uma festa legal, um vernissage, um lançamento. Era um poço de boemia cultural, que acho que hoje nem existe mais. Era prazeroso viver aqui, sem essa criminalidade que está por aí. Então por que não homenagear essa cidade? Usar essa coisa que, depois que você mora aqui um tempo, descobre que a cidade tem”.
Para ele, o paulista deveria ter um amor maior pela cidade, “porque aqui tem muita coisa boa. Nada mais justo que transformá-la em cenário para as HQs, assim como o cineasta Walter Hugo Khouri fez no cinema”.
Então quer dizer que vem mais por aí? “O Xalberto já tá louco para fazer uma continuação, ´A Filha do Dr. Hellmult´, mas ainda não conseguiu me convencer nem ao Sian, por ser um trabalho muito puxado e para o qual ainda não pintou grana. Mas temos ainda um novo projeto, que se chama ´Amor Concreto´: uma história que termina com uma ´trepada´ com a cidade. Eu estou finalizando o projeto do Xalberto e do Sian. É uma relação de amor com a cidade, explorando um pouco do cubismo.”
E finaliza, mostrando que 15 anos se passaram, mas os problemas de grana para viabilizar a produção independente continuam: “Todo mundo achou que a gente era maluco por fazer esse trabalho com dinheiro do próprio bolso. E hoje acho que a gente era mesmo, porque o que pingar vai ser tão pouco que não vai pagar as cachaças que a gente tomou para debater os desenhos”. (23/04/2004)
Serviço:
O Paulistano da Glória
Autores: Bira Câmara, Sian e Xalberto
Editora: Via Letttera
Preço: R$ 18 (68 págs.).
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