Romantismo, política e boemia

Por Norberto Nogueira Jr.*
Quando cheguei a São Paulo, no início de 1964, fui direto para a rua Caio Prado. Meu tio morava em um edifício onde funcionava uma boate no andar térreo. Ao entrar ali pela primeira vez, fui arrebatado pelo ambiente elegante e cheio de mistério, que tinha ainda um piano de cauda, e me apaixonei pela boemia paulistana logo de cara. Não vivi no Centro todos os anos de minha história, mas o período que segue foi repleto de descobertas inesquecíveis.
1965 – Música e repressão
Caminhando pela rua Aurora, passei pela gravadora de discos Chantecler e encontrei um amigo que estava se lançando como cantor. Depois de um almoço regado a conversas e muitas cervejas no Filé do Moraes – que existe na Praça Júlio de Mesquita até hoje – fomos dar uma volta a pé pela região: Viaduto do Chá, Vale do Anhangabaú, avenida São João. Ali, funcionava um sem-número de lojas de discos, que preenchiam o Centro com seu repertório variado. Em cada uma que entrávamos, pedíamos para ouvir Dominique – música regravada pelo amigo em questão. E assim foi, até chegarmos à Ipiranga. Em poucos minutos, o Centro havia sido tomado por sua voz.
Perto dali, em um dia menos alegre, presenciei a primeira manifestação contra o regime militar. Eram os anos de chumbo e São Paulo andava agitada. Do Paissandu à Sé, o Centro ecoava em uníssono. Uma hora depois, a repressão tomava forma, com carros-guincho arremetendo contra os manifestantes e a polícia civil, trajando terno azul-marinho, vinha sem distintivo ou identificação, mas munida de cassetetes. Felizmente consegui driblar a confusão, levando comigo um casal de idosos que estava passeando e foi pego de surpresa. Nessa época, a polícia era educada.
1967 – Boemia e loucura
Morava em um prédio ao lado da Baiúca, que era o bar da moda. Nunca entrei nessa boate, mas encontrava seus freqüentadores no boteco ao lado, que nos abastecia de café e cerveja. No balcão do Sujinho convivi com gente do naipe de Ignácio de Loyola Brandão e Marcos Rey, passando por Jair Rodrigues, Alaíde Costa e o famoso contra-baixista Azeitona, bastante conhecido na noite paulistana dos anos 60.
Nessa época, a Praça Roosevelt era um enorme estacionamento, retratado em filmes antológicos como São Paulo S/A, de Luiz Sérgio Person, e Noite Vazia, de Walter Hugo Khouri. Havia um terminal de ônibus que atendia aos bairros da periferia da cidade e, ao entardecer, filas enormes iam se formando no local. Uma visão surreal me acometeu quando, chegando do trabalho, percebi que todos olhavam na direção do prédio em que eu morava com alguns camaradas. Em nossa janela, escancarada, o ator João Acaiabe, amigo de infância, vestia um roupão de banho e interpretava fervorosamente um sermão de Santo Sebastião, do longa de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Ficção ou retrato da realidade?
1969 – Jingle Bells
A véspera de Natal no Centro tinha um glamour especial. Após as 18h, desci a Líbero Badaró, atravessei o Viaduto do Chá, comprei alguma coisa no Mappin e na Barão de Itapetininga e apreciei as ruas todas enfeitadas sem nenhuma preocupação com violência. Na trajetória de volta, à noite, era bom ir ao cinema, entrar em livrarias, comer comida síria. Mais tarde, exausto, voltei feliz à Vila Mariana, para onde havia me mudado um ano antes. Até hoje moro na zona sul da capital, mas o Centro sempre fará parte da minha história. (13/03/2004)
* Norberto é professor de língua portuguesa e escritor. Em abril de 2004, comemora 40 anos de São Paulo.