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Para reviver um pouquinho do Centro visto pelos seus personagens.

06/12/2025 25.35 ºC, São Paulo

Concurso Sampacentro - O cenário e as personagens

Por Ana González

Difícil encontrar quem me acompanhasse a um passeio ao centro velho da cidade. Cada um dos amigos tinha seu programa de sabadão. Aniversário, cinema, “a espera de uma lance que vai pintar”, da amiga que, agitada, não deu muito espaço para maiores explicações. "Ir ao centro ? andar? Sinto muito, mas não quero zanzar pelo centro", disse outra. Tais explicações ou o tom mais ou menos reticente foi me deixando bem desanimada. Queria aventurar-me pelas ruas. Ver os prédios, sentir o ambiente antigo. No começo da noite, um telefonema de outra amiga, enfim, deu-me a oportunidade. Não muito tempo depois, devidamente estacionado o carro, pegamos a linha norte/sul do metrô em direção à Sé. Um certo ritual era necessário para acessar o que a imaginação desenhara. O passeio seria a pé, de tênis confortável e calça jeans. Na Sé, perto da rua Direita, bem em frente ao silêncio da catedral, um palanque e música eram acompanhados por um público que dançava, cantava ou olhava interessado. Seguimos em direção ao Pátio do Colégio. Havia também silêncio em volta da claridade branca da pequena igreja, delineada em azul. Tudo fechado. Jatos de água faziam um trabalho de limpeza. Festa acontecida durante o dia, ou seria para a comemoração maior do dia seguinte, 25 de janeiro ? À procura do Largo do Café. Buscávamos também a esquina das ruas São Bento e Três de Dezembro, em que, segundo um recorte de jornal guardado há meses, prometia animação e mesinhas na calçada. Em vão. Sem o ambiente divertido da foto, percorremos ruas escuras, desertas e com poucos transeuntes. Na verdade, a foto representara um, mas não o único desejo. Havia outras saudades da cidade velha, da visita ao centro. Era isto por que eu ansiara. À frente.. A pouca iluminação não fazia menores os prédios que nos rodeavam. E a mim, assombravam... ou encantavam ? Moradores de rua dormindo nas portas dos prédios, em caixas de papelão, cobertores, trapos...Guardas de prédios, algum trabalhador de banco fazendo hora extra de trabalho. Sem perder o espírito que nos fizera enveredar por aqueles caminhos, atravessamos o Vale do Anhangabaú. O prédio do Correio, as colunas, pedestal, capitéis e caras. Muitos outros prédios, despercebidos ao olhar cotidiano.Tribos se reuniam nas mesas de bares , alguns com mesas nas calçadas. À medida que avançávamos, a presença de pessoas nas ruas ia aumentando. Íamos chegando ao local de um grande show. Fui observando os rostos e outros grupos nas calçadas e cantos das avenidas e da praça da República . Tipos com muitas tatuagens, com roupas sérias, com tênis ou sandálias, com camisetas e adereços específicos. E vendedores de milhos e de frutas envoltas em chocolate e maçãs do amor. Churrasquinhos e quiosques de garapa e de cachorro quente, encorpavam o menu variado. E águas e cervejas, nas mãos de muita gente festejando o clima agradável de uma noite, antes, prometida de chuva. De tudo e muito, para uma noite e madrugada de alegria e festejo. ...Porque a vida não é somente trabalho e dor, e angústia de ter que viver e às vezes sobreviver nesta cidade - pedágio cruamente cobrado de seus moradores... Nos perdemos pela multidão que já se acumulava. O pulsar do coletivo, algo que permeia os rostos e as figuras em ajuntamentos populares me alimentava . Justificava até certa sensação de euforia que me tomara aos poucos. Estar por ali, no meio da gente, personagens de uma festa. Naquele momento, um elo, uma ligação entre todos,.um significado maior que me elevava acima da minha pequenez. Ausência e esquecimento de si mesmo, o alívio da subjetividade. Ansiedade satisfeita, um pouco de tudo sobrava, então, nos meus olhos formando uma composição cheia de acordes dissonantes e sonantes.. Como num grande teatro, em obra magna. Em grandíssono. Eloqüente som, sob especial batuta. Som que foi crescendo naquela noite, dentro do desacordo de tudo o que havia observado. Ruas em parte invadidas por mendigos, praça pública em paz a dançar, pessoas em busca do mesmo destino em que também me perdera, no meio da multidão, na larga boca de cena. Denso de suor, um transpirar em conjunto, um ritmo das duplas, dos grupos , dos sujeitos, mulheres e homens solitários que formavam o caldo coletivo. Torvelinho de muitos risos e palavras soltas, gestos movimentos muitas vezes desordenados, sempre grandiosos, sinfonia, ópera da cidade, cenário silencioso a compor-se com as muitas histórias, com o peso de cada uma das personagens, com o peso da tradição, daquilo que permaneceu no tempo sem perder o tom, o ritmo, presença junto à massa anônima. De tudo um pouco, ficou dentro de mim. A amiga que me seguiu ? Amiga, amiga em alguns sustos do trajeto, nos medos e nas alegrias. Testemunha de emoções. Ou, simplesmente cúmplice. Mas, principalmente, personagem. Personagem de uma das muitas histórias, de uma história vivida por nós.

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