Concurso Sampacentro - O dia que começa
Por Arlindo Gonçalves
“... a temperatura em São Paulo e, de certa forma, em todo o resto do Brasil, tem ficado mais elevada a cada ano. Neste início de inverno, diferentemente dos anos anteriores, a estação já começa bastante fria. Os termômetros marcam agora, às 5h30 da manhã, apenas oito graus...” Pereira desliga o rádio, cortando abruptamente o locutor. O apartamento na avenida São João está vazio de outras pessoas. Há somente o velho em sua biblioteca — lugar de antigo orgulho, tão antigo quanto os volumes que a integram. Acumulando mofo — dos livros que Pereira já não tinha mais cabeça para ler —, a biblioteca encerra também um par de muletas, poucos móveis, alguns aparelhos, várias fotografias de família, bem como muitos recortes de diferentes jornais — coletados em épocas variadas. Em um canto, Pereira vê as muletas e lembra-se dos conselhos dados por seu médico. Precisaria exercitar-se para, na altura de seus 76 anos, afastar os fantasmas das doenças cardiovasculares que o consomem; tão importante quanto o benefício para o corpo, precisaria exercitar-se para afastar a depressão. Pereira fita pateticamente as muletas, pega-as e vai com dificuldade para a janela. Tem a intenção de, no Minhocão — visto do seu apartamento — encontrar o traçado oportuno de uma difícil caminhada dominical que rapidamente planeja. Sim, Pereira precisa, em seus atuais 76 anos, sair naquele dia para afastar os fantasmas das doenças cardiovasculares e da depressão que o consomem... então viver... em mais solidão... por mais um ou dois anos. Pereira recoloca as muletas no canto. Desiste. Através da janela de sua biblioteca, vê o Minhocão completamente vazio naquela manhã de domingo. Os carros não virão, o dia em São Paulo está começando. Para Pereira... não.