CONCURSO SAMPACENTRO - os vencedores!
Depois de muita inspiração e transpiração dos leitores do site e de horas de leitura da equipe do Sampacentro chegou a hora de revelar os ganhadores do nosso concurso literário!*

O Centro de novas idéias
por Flávia Tavares Gasi - 1a. colocada
Adão pode parecer um tanto excêntrico. Nem sempre reconhecemos beleza no primeiro momento. Daquela vez que eu o vi, ele usava uma boina velha e preta, em tanto desbotada, que escondia seus cabelos, mas mostrava algumas gotas de suor do alto da sua testa. Seus olhos não me focavam diretamente, principalmente o direito, que insistia em não se mover na órbita. Já o esquerdo bailava e flutuava.
De feições pardas, algumas rugas mostravam a vida que passou e ainda ia passando. O bigode e barba já não eram inteiramente pretos e nem brancos. Como sua camiseta, que um dia teve cor definida e era um pouco apertada demais, deixando aparecer a vasta barriga. A calça jeans surrada estava com a braguilha aperta, mas ele parecia não se importar. As suas mãos eram calejadas, mas ágeis ao virar as páginas de um livro. Os pés, vestidos com um chinelo quase marrom, ainda mostravam as marcas da sua última discussão com um capitão da polícia. As marcas, ele dizia, faziam-no lembrar de quem tinha sido e de quem é.
A excentricidade de José Adão Pinto, 54, não está apenas em seu modo de vestir, mas na forma de ver o mundo. Anarquista de pensamento, Adão afirma ter encontrado uma maneira de transformar sua utopia em realidade. Ele é o dirigente do único sebo revolucionário de São Paulo. Localizado dentro da ESP, Escola de Sociologia e Política, no centro. Adão coloca seu modesto negócio como um modo de militância diária. “A militância dos dias de hoje não precisa mais ser armada. Descobri, com o tempo, que mudar o mundo significa confiar nos outros e dar espaço para essa confiança se valer”.
O lugar escolhido não podia ser mais certo, como aquela vestimenta, que caia perfeitamente nele. A ESP é um espaço de estudo e luta política. Além dos livros, ele distribui conselhos e divide experiências de vida. Quem acredita que ele é um homem sem estudo acadêmico, passou bem longe da verdade. Apesar de formado em Ciências Sociais, escolheu uma vida diferente do modelo planejado pelos seus pais.
De carregador de livros a vendedor e dono da sua editora, tornou-se um livreiro ambulante. Para ele, um sebo não é constituído de velharias, livros sem sentido e caindo aos pedaços, mas sim, de itens usados e de qualidade.
Todo o material foi lido por José Adão, que gosta de indicar os melhores. “Não tem porque eu vender um livro que nunca li. Raramente chega algo que nunca li, mas se isso acontece, leio antes de colocar na prateleira. Só pra me certificar”.
A idéia é considerada libertária não apenas pelo conteúdo do material, mas também pela forma que é administrada. É simples, o sebo funciona 24h por dia, não importando se alguém esteja presente. Como a faculdade também não fecha à noite, é só deixar o dinheiro com o guarda de guarita. Ou então, avisar Adão pela manhã.
Os alunos já estão acostumados com a rotina, e mesmo as pessoas de fora não são empecilhos para que o trabalho continue. Ele afirma que não aconteceu um só roubo nos últimos dois anos. “E cada ano, entram mais 180 alunos só aqui na ESP”, completa.
O sebo é uma escolha de vida viável. “Me sinto privilegiado nesse ponto. Não preciso ganhar muito dinheiro, desde que ajude as pessoas a se tornarem seres humanos mais completos”.
Vale a pena passar por lá, não apenas para conferir o sebo e as obras disponíveis. Nos recorda de que nem sempre e não necessariamente o “Homem é lobo do Homem” e que competitividade pode ser transformada em cooperativismo. Talvez, quando se tenha clareza da sua militância, seus atos possam influenciar a vida cotidiana das pessoas.
Sopro nas arcadas
por Luigi Augusto de Oliveira - 2o. colocado
Em tempos mais amenos sentávamos no chão, pernas estendidas, nas escadas entre os andares, tardes inteiras, e espiávamos a luz do sol a extrair cores antigas dos grandes vitrais coloniais da Faculdade. O Largo do São Francisco ainda conseguia o silêncio. Banhados pela suavidade das cores, deixávamos que os sonhos se estendessem e – como canções – preenchessem todo o espaço, até a última sala de aula. Era 1968.
Foi aos poucos que nossos olhos atônitos e sem sombra de rugas descobriram o primeiro bloqueio traiçoeiro, que nos exigiu a primeira barricada acanhadora – imaginária ainda, entre os andares: pois nos de baixo, sobretudo no logo abaixo, o que mais nos era arredio e menos nos levava a sério, o administrativo, o andar do poder, descobríamos orelhas e lábios de aluguel. E em sorridentes tipos que nos habitavam o cotidiano, alguns ditos camaradas!
No entanto, formávamos a maioria – não no número de bípedes, mas no que dá forma ao entusiasmo, sísmico, anti-indiferença, capaz de enredar e mover toda energia que se mostrasse disponível. Arregimentando não poucas dezenas de utopistas, filoutópos ou utopólogos convertidos, forçamos o portão sob o trio de arcadas de glória antiga (Álvares de Azevedo, Castro Alves e Fagundes Varela os nomes incrustrados: sob este sol rebrotávamos), e cada porta, e tomamos cada sala, departamento, e acampamos – usucapimos o espaço que proclamamos destinado ao sonho. Não podíamos muita coisa – um banho digno era luxo, a comida da mãe esfriava, longínqua – mas, o que podíamos, esse era nosso, realizado, vivido, trabalhado, pensado e saboreado em cada milímetro e a cada minuto. Nem tudo era ideal adiado ou impalpável – o prazer dos trajes informais, a visão das colegas a passearem enfim sem vestidões amordaçantes, em calças moldantes de nossos desejos, em meio à solenidade das colunas, e ouvir mestres proibidos a exercerem seu saber e empolgar o nosso de acordo com o que combinávamos: o Tema por trás dos temas, em suma, era um: a coragem. Por trás de toda embriaguês, era o que de fato nos embriagava, o Grão Lírico por trás dos poemas bêbados que recitávamos pelos salões vetustos.
Mas em nossos portões era um mar o que se esbatia: contra as vagas de nosso onirilirismo, contrapunham-se correntes de secura alimentadas pelo peso da inércia dos acomodados, dos práticos rasteiros, dos escravos do hábito, de todos os que, na primeira oportunidade, com gozo feroz soterram sonhos, com fel ou com moedas – enquanto, em segredo, talvez invejem os que em desatinadas caravanas persistíamos, ainda que convertidos em sombras de olhar extático, fixos num ponto que os recalcados jamais conseguem enxergar. Contramaré: alagou o térreo, fez do primeiro andar um pântano, escorreu por todo o segundo e já pelas escadas que levavam ao terceiro, onde, acuados, defendíamos posições da maneira mais explícita, calorosa e efetiva que sabíamos: fazendo furiosamente o amor, rolando pelos ladrilhos sem dar atenção às primeiras câmeras das TVs castradoras.
Mais tarde, e tarde demais, alguns – de entre os expulsos – voltaríamos; mas não havia, de fato, para onde voltar.
Os vitrais, ainda durante muito tempo, nos fariam sonhar – embora os sonhos, embaciados pelas décadas, mudassem as formas, rumos, horizontes: mais maduros, opacos, secos, céticos. E durante os pesadelos amortecidos (para nós, identificados já como ordeiros, pré-cordeiros), a luz desses painéis de motivos singelos nos trazia inesperados e gratuitos momentos de afeto – e alívio.
*Entraremos em contato com os vencedores por e-mail.
Untitled Document
* Conheça quatro internautas que ficaram na reta final. Não ganharam os prêmios de primeiro e segundo colocados, mas vão levar ingressos para peças de teatro, no Municipal e outros palcos espalhados pela cidade.