As casas da luz vermelha

23 de abril de 2000. A data marca o início de um árduo e perigoso trabalho de campo de três jornalistas. Ana Laura Diniz, Renata Bortoleto e Michele Izawa mapearam a prostituição na Boca do Lixo. “O primeiro objetivo era mapear todas as ruas, casas, cinemas e hotéis da região. Coletar dados para a elaboração posterior de um cronograma de ações”, conta Ana Laura.
Após as pesquisas necessárias e desarmadas até mesmo de gravador, “porque seria até um risco levar”, elas visitaram a zona de venda de programas e conversaram com leões-de-chácara, mulheres da vida e clientes para retratar as idas e vindas de um tipo de negócio que existe desde os primórdios da humanidade e não aparenta ter término de freguesia.
“Tomamos bastante cuidado para não transformar as pessoas que trabalham na noite em heróis nem em vítimas da sociedade. Retratamos o local e esses profissionais sem preconceito nem juízo de valor.”
Ana Laura conta que algumas vezes passaram por situações complicadas: “Um dos maiores problemas é a imprevisibilidade, você não sabe com quem está lidando. Quando entrevistamos um cliente das boates foi um exemplo disso. Numa noite, ele nos viu conversando com a bilheteira de um cinema pornô, nos seguiu e começou a conversar conosco. Se ele fosse uma pessoa perigosa, estaríamos perdidas. Mesmo alertas, essas coisas podiam acontecer durante nosso trabalho”.
Outro problema é que muitas pessoas se fechavam ou as recebiam de modo rude. “Dificilmente as pessoas param para fazer perguntas nesse tipo de lugar, por isso os diálogos travados com porteiros e laçadores ocorriam em meio à estranheza.”
Mas as dúvidas eram inerentes. “Nenhuma de nós havia entrado nesses clubes e tínhamos nossos próprios preconceitos a serem vencidos. O preconceito que você coloca você mesmo tem de tirar.”
Alguns dogmas também serão quebrados para o leitor de “Contos de Bordel” e algumas opiniões populares serão confirmadas. Um exemplo: o lucro das prostitutas vem dos programas. Nem sempre. Elas normalmente ganham mais com as comissões recebidas pela venda de bebidas nos bordéis, já que uma cerveja pode custar até R$ 12 na Boca do Lixo e uma dose de uísque, R$ 25.
Já o cinema acertou mais. Quem assistiu a “Uma Linda Mulher”, em que Julia Roberts vivia uma meretriz, deve lembrar que ela se recusava a beijar os clientes. Pois bem, não beijar é uma das regras mais tradicionais entre as garotas de programa, “pois o beijo facilita o envolvimento emocional”, segundo elas.
Fruto de dois anos e escrito a seis mãos, as histórias acabaram se impondo naturalmente. Mas não sem suor. “Quando chegávamos em casa, de madrugada, fazíamos relatórios do dia individualmente, porque uma podia observar algo que a outra não tinha visto”, afirma. “E, mesmo com os personagens na mão, passamos por diversas situações de impasse. Chegamos a ficar paradas em frente ao computador durante três horas discutindo o uso de apenas uma palavra.”
O livro recebeu o 3º Prêmio Volkswagen de Jornalismo, categoria livro-reportagem, em dezembro de 2001. Em meados de 2002 as recém-formadas jornalistas fecharam o acordo para publicá-lo pela Carrenho Editorial.
“Não tiramos nenhuma prostituta da Boca do Lixo, não demos emprego para ninguém, mas o livro serviu para disseminar a reflexão e sair dessa ‘espiral do silêncio’, que existe até no meio jornalístico. Afinal, o tal submundo e suas várias vertentes estão alcance dos olhos, dos braços, dos cheiros, etc, nos faróis, nas calçadas, em todo lugar.” É impossível, realmente, ignorar o mercado de sexo que o livro põe a nu. (07/12/2003)
Serviço:
Contos de Bordel - A Prostituição Feminina na Boca Lixo de São Paulo
Autoras: Renata Bortoleto, Ana Laura Diniz e Michele Izawa, com prefácio de Florestan Fernandes Jr.
Editora: Carrenho Editorial (160 págs.; R$ 29)
Para quem estiver no Rio, o lançamento é no dia 9 de dezembro, a partir das 19h30, na Livraria Prefácio (Rua Voluntários da Pátria, 39, Botafogo). Em São Paulo, o lançamento oficial rolou no dia 5 de novembro, mas no dia 6 de dezembro, Renata e Michele autografam durante o “Autor na Praça”, na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, desde as 15h.