Flash news

Para reviver um pouquinho do Centro visto pelos seus personagens.

06/12/2025 24.02 ºC, São Paulo

Companheiros de piscina

Por Sylvia Colombo Me disseram que está tudo diferente na ACM. Parece que, no primeiro andar, na entrada dos vestiários, não há mais aquela grande porta giratória de ferro, que descascava por conta do uso e da idade. Ouvi dizer, também, que os vestiários estão mais moderninhos, que não é preciso deixar as coisas naqueles armários enferrujados e barulhentos. De vez em quando, os cadeados enguiçavam de vez. Antes de nos desesperarmos, porém, descobríamos que havia um modo de rompê-los - um alicate gigante surgia nas mãos de um funcionário de avental branco que o manuseava com a facilidade de quem conhecia aquele instrumento há décadas. Já não devem estar mais lá, também, as simpáticas cestinhas em que os associados mais antigos deixavam seus pertences pessoais enquanto assistiam a uma aula de dança de salão, aprendiam basquete ou faziam sauna. As cestinhas eram numeradas e viviam numa espécie de cofre coletivo cuidadosamente guardado por dois funcionários. Para administrar o sobe-e-desce desses pequenos cofrinhos, eles usavam varetas com uma ponta de isca, como se fossem participar de uma brincadeira de pescaria na areia em uma festa junina. Também me disseram que o saguão de entrada não está igual. Que não há mais os velhos sofás de couro que conhecíamos de cor, com seus vincos e rasgos aqui e ali. Lembro-me de inúmeras tardes iguais, iguaizinhas mesmo, em que passava lá pelo menos uma meia hora enquanto esperava o treino de natação começar, e outro tanto depois que ele terminava. Era um local de encontro, bate-papo, azaração ou leitura, separado por uma grande janela de vidro do cenário da Rua Nestor Pestana - dava para ver um canto do Teatro Cultura Artística, o portão da Igreja Presbiteriana Independente logo em frente e um bêbado com a cara toda machucada que guardava os carros em frente ao prédio. Nos meus anos de estudante - estou falando de fins dos anos 80, início dos 90 - tempo era algo que não me faltava. Via, daquele saguão, as mesmas caras desfilando mais ou menos nas mesmas horas. Eram os meninos do futebol, adolescentes de uniforme e meias brancas. Depois, os senhores e senhoras que subiam, também de branco, com camisetas estampadas com o símbolo da ACM. Geralmente seguiam aos pares, falando muito, para sua aula de ginástica para a terceira idade. E havia os senhores aposentados, alguns de chinelas, que disputavam as varas de jornais disponíveis - o preferido era o Estadão - para ver quem completava as palavras cruzadas primeiro. Cansei de ouvir grunhidos revoltados de alguns deles nas minhas poucas e vãs tentativas de chegar a um daqueles periódicos antes que eles os desvirginassem, elucidando os crucigramas. E havia nós, um grupo de pessoas de diferentíssimas idades, origens, gostos e tudo o mais. Nosso único elo de ligação era gostar de nadar, nadar muito. Ocupávamos a piscina da Associação Cristã de Moços por duas horas diárias, das 17h30 em diante. Interagíamos muito pouco com a vida do resto do prédio, mas éramos, sem nenhuma dúvida, parte daquele mundo. A piscina em que nadávamos, apesar de, me dizem agora, estar bem diferente, ainda é a mesma. A mesma, inclusive, que meu pai frequentou, lá pelos anos 60. Para chegar até ela a partir do vestiário era preciso descer por uma escada de ladrilhos brancos, em caracol. Os corrimões eram como imensas cobras de pedra branca. Cansei de escorregar ali, tentando subir ou descer correndo, uma vez que era, para uma friorenta como eu, o lugar mais gelado da terra, ainda mais no inverno. Era um alívio chegar à piscina e receber na cara o bafo quente que vinha do sistema de aquecimento da água. Ou ao vestiário, onde o calor das chuveiradas em curso me acolhia. Ir à ACM era, para mim, um pequeno ritual diário. Pouca coisa era mais importante nos meus dias adolescentes do que nadar. Por muitos anos, me vi ajustando e administrando todas as minhas outras atividades. Faculdades (fiz duas), leituras, namorados, tudo tinha que acontecer antes das 17h30 ou depois das 19h30. Eu ia de ônibus (nasci e cresci no Paraíso). Lembro que pegava o Patriarca, ou o Lapa, qualquer um que descesse a Consolação, e pulava ali na frente do que era a Biblioteca Municipal da Praça Roosevelt. Era sócia daquele velho depósito de livros embolorados, muito mal-administrado, mas com uma bibliotecária muito atenciosa, uma negra de mãos bem grandes e olhar doce. Era comum sair dali com um livro debaixo do braço, dar a volta pela Rua Nestor Pestana, tomar uma coca-cola no Coisa Nossa - um boteco que acho que ainda existe - e despencar num dos sofazões do saguão da ACM. Lia duas ou três páginas, e logo meus companheiros de piscina ali estavam. Depois que entrei nas faculdades - História na USP e Jornalismo na PUC -, a logística de chegar ao Centro diariamente naquele horário ficou bem mais complicada. Não desisti. Saía da Cidade Universitária com meu Corcel 72 - vermelho berrante, aquele de faróis traseiros quadradinhos - às 17h em ponto. Chegava atrasada, mas, às 17h45, estava dentro da água. Depois do treino, saía voando para a aula de jornalismo, que fazia à noite. Era acelerar pela Rua Maria Antonia, Avenida Higienópolis, cair pela Pacaembu, subir até Perdizes e largar o carro mal estacionado em algum lugar da Rua Monte Alegre. Nas noites em que não havia aulas - ou nas inúmeras em que eu simplesmente as matava - era fantástico. Sempre havia um filme do Kieslowski ou algum iraniano - sim, já estava começando a invasão - no Cine Bijou, ou escolhia entre as exibições mais comerciais dos dois Cines Arouche - que já conheciam então a decadência em estágio avançado. Tinha dois companheiros comilões - um deles morreu, outro ainda é um dos meus amigos mais queridos - com quem ia frequentemente aos restaurantes e botecos em torno da ACM. Eram noites em que compensávamos o esforço físico de toda uma semana, e nos enchíamos de massa no Gigetto ou de cerveja em estabelecimentos nada luxuosos cujos nomes acho que nunca cheguei a conhecer. Hoje, ironicamente, trabalho bem perto deste universo. Encontro-me com o Centro da cidade diariamente. Sei que está bem diferente, mais feio e menos charmoso do que o que eu conhecia. Mas, outro dia, quando me disseram que a ACM mudou, pensei que deveria estar melhor, mais bonita e moderna do que aquela que guardo com carinho em minha memória. Tomara que sim. Mas eu não quero ver. Sylvia Colombo, 31, é jornalista, mas passou a vida se sentindo um peixe fora d´água

Tags Trending TrendingTrendingTrendingTrending