A história da "Arca sem Noé"

A escritora Regina Rheda morou no bloco E do edifício Copan de 1990 a 1995. A experiência foi tão intensa que ela resolveu transformá-la em livro. A obra, "Arca sem Noé" (2a. edição, Rio de Janeiro, Editora Booklink, 2002), mistura a realidade do cotidiano do prédio com um ar caricato,criado pela autora. "'Arca sem Noé' joga muito com o limite entre realidade e ficção, e esse jogo foi um dos fatores que,conforme está escrito no catálogo do prêmio Jabuti de 95, deram o prêmio ao livro", explica ela. Seu primeiro apartamento localizava-se no 27º andar e era, segundo ela, "uma espécie de quitinete melhorada. A cozinha era maior do que as das quitinetes convencionais, o banheiro era suficiente, e a sala podia ser dividida em duas partes, formando um pequeno quarto e uma pequena sala". Depois, Regina comprou um apartamento igual àquele, no 22º andar, para onde se mudou. Seus companheiros na época foram dois gatos que ela salvou do abandono na Praça Roosevelt, Tipsy e Tolstoy. "Eles vieram comigo para os Estados Unidos, onde vivo. Continuamos juntos até hoje", diz. O título "Arca sem Noé" foi inspirado na época em que fazia cinema, dirigia curtas-metragens musicais no estilo das antigas e famosas chanchadas da Atlântida. "Meus filmes se chamavam 'Fuzarca no Paraíso', 'Folguedos no Firmamento', 'Folias Siderais', 'A Bicharada da Doutora Schwartz'. O título 'Arca sem Noé' segue a mesma linha bem-humorada e irreverente dos títulos das chanchadas. Meus livros seguintes também têm títulos no estilo chanchada: 'Pau-de-arara Classe Turística', 'Amor sem-vergonha'", conta ela. Em janeiro de 1995, Regina vendeu o apartamento do Copan e comprou um outro de um quarto nos Jardins. Em 1999, foi para os EUA, levada por um um americano que conheceu em São Paulo e por quem se apaixonou. No ano seguinte, se casaram. Hoje, moram na cidade de Gainesville, na Flórida. De lá, ela continua escrevendo. "Tenho um romance pronto para ser publicado no Brasil, o 'Rockordel'. Em 2002, a editora Nova Alexandria publicou dois novos contos meus em antologias de vários autores contemporâneos, chamadas 'Pátria Estranha' e 'Histórias dos Tempos de Escola'. E estou acabando de fazer uma pesquisa para iniciar a escrita de um novo livro." Em entrevista ao Sampacentro, ela fala um pouco sobre o processo de concepção de "Arca sem Noé". No geral, como foi a experiência de morar no Copan?
Naquela época (13 anos atrás) o Centro era menos decadente e menos violento do que é hoje. O Centro da cidade e o prédio me fascinavam por dois motivos: diversidade humana e cultural e acesso a todas as facilidades da vida urbana. As megalópoles me fascinam e o Copan é um microcosmo da maior metrópole da América do Sul. Morei sempre em andar alto e com vista interessante. Ia muito ao terraço do edifício para ter uma panorâmica do skyline da cidade, gostava de subir e descer as escadas de incêndio. Ficava fascinada ao observar os moradores e os transeuntes da Av. Ipiranga, em sua magnífica variedade. Esse fascínio por figuras humanas e cenários tem a ver com minha vocação cinematográfica e ficcional. Eu também gostava de lá porque os apartamentos eram (são) muito bons. Acho aquela curvatura em S muito fotogênica e linda aquela escadaria de incêndio. A segregação social reforçada pelas diferenças entre os seis blocos (uns com apartamentos grandes e luxuosos, outros com quitinetes) às vezes se desfaz nas áreas comuns, acessíveis a todos os moradores, que são a galeria e o terraço. Não sei se o terraço já está aberto. Quando saí de lá, tinha sido trancado. Como veio a idéia de fazer o livro?
Minha primeira idéia foi fazer um filme, um documentário. Não consegui verba e, alguns anos mais tarde, resolvi escrever um livro de ficção, o "Arca sem Noé". O livro foi escrito há 10 anos, quando o Copan estava em frangalhos, dilapidado por uma seqüência de administrações ruins. Você entrevistava as pessoas ou o livro foi baseado na observação e em experiências pessoais?
Entrevistei pessoas para fazer o projeto do documentário. Depois acabei misturando a informação conseguida nas entrevistas com o resultado das minhas observações e experiências pessoais. "Arca sem Noé" joga muito com o limite entre realidade e ficção, e esse jogo foi um dos fatores que, conforme está escrito no catálogo do prêmio Jabuti de 95, deram o prêmio ao livro. Mas a verdade é que há muito pouco de real no livro. Quase tudo é ficção com muita sátira, caricatura e paródia. Algumas coisas são reais, como a história da construção do prédio, que está no primeiro conto, chamado "O Mau Vizinho". O espaço descrito é real (grande parte de cada conto se passa em um espaço característico do prédio, de forma que, ao terminar de ler os 8 contos, o leitor tem uma boa idéia da estrutura do Copan). Também são reais alguns acontecimentos, como a falta d'água, as lendas locais de assombração, a transformação do Cine Copan em igreja evangélica e outras coisas. Inspirei-me nos moradores que para fins literários me pareciam os mais fascinantes e criei personagens satíricos. E claro que, ficcionista que sou, e não jornalista, exagerei, colori, inventei situações e trajetórias para esses personagens. O resultado é um registro do tipo de vida que pulsa em cidades como São Paulo, dentro de edifícios como aquele. Qual característica do livro você apontaria como mais interessante para os leitores?
Para pessoas afeitas à fantasia e à ficção, como os artistas, a experiência dos contrastes, em oposição à experiência da uniformidade, é muito estimulante. Como eu já disse, o Copan é um microcosmo de São Paulo, e um dos aspectos fascinantes da cidade (assim como do Copan) é o contraste decadência/sofisticação. Claro que muitos desses contrastes não deveriam existir, de verdade. Por exemplo, a convivência da miséria com o luxo. Miséria convivendo com luxo é sinal de injustiça social. Seria muito melhor se não houvesse miséria e ignorância. Mas fazer sátira sobre desgraças como a miséria e a ignorância é um artifício que o escritor utiliza para denunciá-las de forma divertida. No meu livro, "Arca sem Noé", procurei reproduzir, de maneira ficcional e bem-humorada, os vários contrastes do Copan e da cidade de São Paulo. Pretende voltar ao Brasil?
Sou muito feliz aqui nos Estados Unidos e, por enquanto, não tenho por que voltar a me estabelecer no Brasil. Meu marido é brasilianista e tem muita ligação com o meu país de origem, portanto o Brasil está sempre presente em tudo que fazemos. Já a cidade de São Paulo (que eu amo desde menina, quando vivia no interior) continua me fascinando pelos mesmo motivos que expliquei antes. Se eu precisar morar de novo no Brasil, vou querer morar na minha adorada Sampa. "Arca sem Noé" está à venda pelo site da editora Booklink (www.booklink.com.br), no formato tradicional (livro em papel) e também no eletrônico. (04/02/2003)