Poeta de corda

O vilarejo onde se principia essa história se chamava Marcação, no interior do Sergipe. Diz a lenda que as autoridades estavam fazendo um levantamento das dimensões do local e o povo acabou adotando a palavra como nome do município. “Depois mudaram para o nome de um general, um tal de Augusto Maynard. Estragou. Quem sabe quando eu morrer não viro o nome da cidade?”, começa Zacarias José dos Santos, já brincando, a desfiar a narrativa.
Sem pressa, já que desde 94, quando sofreu um derrame, “perdeu o ritmo”, continua: “A professora Dona Menininha foi quem me iniciou nas rimas. É que, na zona rural, sempre foi prática ensinar na cantoria. Ia toda a criançada para a escola cantarolando”. Fez colegial científico na capital, Aracaju, mas não queria ser comerciante como o pai. “Por bobagem de adolescente, fugi para São Paulo, achando que ia ter mais oportunidade em lugar grande. Mas o que eu não queria era ficar à sombra do velho”, continua.
Aqui foi difícil arrumar trabalho, levou bomba no vestibular de medicina. “Um dia, eu já estava desistindo. Me sentei num dos bancos da praça em frente à Biblioteca Municipal e fiquei pensando na vida. Passou um homem procurando um assistente para ser escriturário. Arrumei um emprego, finalmente”, conta.
Mas a burocracia descontentava Zacarias. Prestou vestibular de novo, desta vez, para direito. Passou e cursou. O trabalho acabou o aproximando do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. “Resolvi que tinha de levar para o povão o conhecimento que eu absorvia”, diz Zacarias. Poeta, se deixou influenciar por João Cabral de Melo Neto e virou outra pessoa: Severino José. “Na obra de João Cabral, Zacarias é o dono da sesmaria. Severino é o povão. Troquei de nome.”
Ao todo, escreveu 15 cordéis. Verteu para a linguagem de embolador clássicos como “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, e fábulas de Esopo (“A Cigarra e a Formiga”) e La Fontaine (“O Leão e o Mosquito”) e criou contos mais modernos (“Aids, Doença da Gota Serena que Mata o Cabra sem Ter Pena”). “Tem de tudo no cordel. De Aids a 11 de setembro, de Bocage a Shakespeare, sempre com um final feliz. Como o povo gosta”, diz.
Contudo arrecadou muito mais folhetos do que escreveu. Atualmente, sua coleção beira os 10 mil. “Por 15 anos, trabalhei na Praça da República, vendendo cordel na corda mesmo, como tem de ser.” Tempos depois, ficou sabendo que era o segundo procurado pelo Dops que morava no Copan. “Era eu e o Plínio Marcos. Mas nunca fui preso. Acho que eles estavam atrás de mim porque eu também vendia gravuras de personalidades, entre elas, a de Che Guevara”, conta o cordelista.
De repente, na pose para a foto, fica sério e diz: “Você sabia que o João Cabral nunca sorria? Ele era que nem a poesia dele: seca, firme”. “E o senhor é seco”, pergunto. Ele sorri meio de lado.
Severino José foi do sofisticado ao popular, dos clássicos para o povão. “A minha preocupação sempre foi divulgar uma coisa que é tão nossa e, ao mesmo tempo, tão desconhecida. Lá fora dão importância ao cordel, tem até estudos no Japão. Falta a gente valorizar aqui.” (19/08/02)
Serviço:
Severino José
Autor: Zacarias José dos Santos
Editora: Hedra
Preço: R$ 12 (176 págs.)