São Paulo é cloaca de gerúndio
Por Gustavo Steinberg

São Paulo é uma cloaca cósmica, um lugar sem fim, sem começo, mas que atrai. O que define a cidade é um estado de ocupação mental. Se você estiver em qualquer lugar --do Brasil ou do mundo--, com a cabeça plenamente ocupada, mas sem saber muito bem por que, é bastante provável que, de alguma forma misteriosa, você esteja em São Paulo, mesmo que não fisicamente. São Paulo é mais uma condição do que um lugar.
De fato, basta notar que não existe entrada para esta cidade. Onde começa São Paulo? Pegando a Rodovia Dutra, de carro, tenho sempre a impressão de que a cidade começa mais ou menos em São José dos Campos: de repente, se está em São Paulo.
Agora, sair dela é uma outra história. Aleatoriamente realizada como a arquitetura das escadas rolantes de um shopping center, a saída da cidade implica obrigatoriamente a passagem por corredores enormes com vitrines que apelam a todo momento para sua atenção: você não sabia que aquelas coisas estavam lá, mas, uma vez que por lá passa, acaba olhando e se interessando, mesmo que pela mera curiosidade de quem descobre algo que não procurava.
Só alguns motoristas de táxi, aqueles que são verdadeiros hackers utilizando sua capacidade total de raciocínio para memorizar os improváveis caminhos da cidade, são capazes de circular sem um guia de ruas. Nas épocas em que meu tempo é menos precioso, costumo utilizar a alta probabilidade de me perder na cidade como ocupação mental --antes de me perder, começo a fazer um tour por locais que não conheço, ou seja, os locais por onde passo. Isto não quer dizer que não tenha nunca passado por estes locais. Quer dizer que, por mais que passe por eles, não consigo reconhecê-los. É tudo tão igual, a maior parte tão feia, tão sem nenhum parâmetro estético --a não ser pelos carros que se repetem em número finito de marcas--, tão sem nenhuma lógica arquitetônica ou urbanística (que, por aqui, é literalmente sinônimo de especulação imobiliária), tão cheio de gente. Gente tão igual. Mas as pessoas, ao contrário dos prédios, se mexem um pouco mais. Não se reconhecem, mas se conectam, se aproximam por noções estéticas, por ocupações mentais pouco importantes, mas cheias de sentido.
Conexão. Este é o principal aprendizado que esta cidade, pensada como condição mais do que lugar, tem me proporcionado. Esta estrutura urbana maciça e pouco impressionante é o palco ideal para as conexões aleatórias e por conseguinte para os acontecimentos mais improváveis.
Hoje um jornalista me perguntou se o filme sobre São Paulo que fiz com o Marcelo Masagão é uma ficção ou um documentário. Pergunta já bastante decodificada. Mas, por ser São Paulo o objeto do filme, a pergunta assume uma outra dimensão: tentar ser documental em relação a São Paulo é, ao meu ver, falhar em retratar a realidade. Documentar, aqui, é falar da multiplicação causada pelo encontro de pequenas e egoístas subjetividades, muito mais que falar da soma de grandes e altruístas objetividades.
São Paulo não tem centro. Os centros se reconfiguram a cada segundo através das conexões entre pessoas. E nada de Casa Grande e Senzala, nada de pretensa cordialidade. Ou, pelo menos, bem menos do que em outras grandes cidades (principalmente as brasileiras). Não que isso seja louvável. Talvez não seja nem um pouco.
Para os humanistas de plantão --dos quais não consigo me excluir-- talvez o grande investimento numa forma de sociabilidade efetivamente nova (e interessante, por ser improvável) esteja no tipo de conexões que podem ser estabelecidas por aqui. A internet, que tem proporcionado raciocínios que variam da euforia à catástrofe, parece ter vários traços em comum com esta forma de se conectar: conexões mais fluidas, menos marcadas por esferas centralizantes como as instituições ou rígidas como as leis.
Um caminho interessante para uma rede de conexões como São Paulo seria ampliar sua conectividade para outras redes afins, quem sabe outras grandes cidades do mundo, Cidade do México, Nova Delhi, Nova York, Cairo. Talvez estes espaços, ou melhor, estas condições de conexão, estejam muito mais próximas entre si do que países que se associam em blocos internacionais como a União Européia ou o Mercosul. E para quem acha que isto é uma utopia que demorará séculos, eu digo que estas cidades mostram que o espaço das utopias cedeu lugar para o tempo das conexões. Chega de Estado, chega de particípio, chega do feito, vivamos o gerúndio, o estando, o fazendo. (25/11/2001)
Gustavo Steinberg é diretor e roteirista de cinema e se considera um aficcionado pela cidade. Seu mais recente "documentário", "Um Pouco a Mais, Um Pouco a Menos", em parceiria com Marcelo Masagão, vê o desvairado labirinto paulistano em 90 graus, nas asas de um helicóptero