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Para reviver um pouquinho do Centro visto pelos seus personagens.

06/12/2025 26.28 ºC, São Paulo

Impressões de Sampa, por Marcelo Träsel

Uma semana em são Paulo. Hotel Artemis, um quarto velho, decadente, gasto, mas limpinho e com uma cama que de alguma forma lembra as noites na casa dos meus avós em Lajeado, onde eu sempre dormia bem. Uma mercearia perto e porteiros chinelos. A primeira providência foi ir ao mercado, comprar umas cervejas e bolachas. Férias de julho perfeitas, apesar de ter muito trabalho a fazer na cidade. Entrevistas, seleção para a Folha. Em todo caso, ao menos férias da família, dos amigos, do computador - uma semana sem ler o correio eletrônico! - e da faculdade. Muita gente acha depressivo estar sozinho em um quarto de hotel velho isolado no centro de uma metrópole. Eu gosto. Primeiro, porque dá para colocar a leitura em dia, sem outras distrações. E também para testar a auto-suficiência emocional. Um dos melhores programas foi assistir a um jogo da seleção na padaria aurora, depois de comer uma costelinha de porco com polenta e tomar uma cerveja com uma rapaziada que estava no balcão. A melhor parte das viagens é se misturar com o pessoal nativo em lugares nativos. Pontos turísticos são legais de visitar, mas ficando só neles é impossível conhecer uma cidade - até porque atrações para turistas são iguais no mundo inteiro, só mudam a língua e os preços. Tudo esterilizado e pasteurizado para agradar a todos. Mas as pessoas, essas sim são interessantes. E em São Paulo, muito simpáticas. Muito mais do que os meus conterrâneos, por sinal, que adotam uma postura mais européia de individualismo. Não, isso não é bom. É a faceta mais chata dos europeus. As padarias são um fenômeno interessante na cidade. Ao menos onde eu estava, todos iam jantar na mesma padaria aurora, todos os dias, e eram amigos dos atendentes. O que me lembra a afirmação de uma amiga: "em São Paulo, todo mundo vive em guetos". Paradoxalmente, há mais vida comunitária lá do que em uma cidade como Porto Alegre, bem menor. Talvez justamente o tamanho faça as pessoas se juntarem em grupos definidos pelo bairro, rua ou padaria. Vivendo no Sul, é difícil entender porque os gringos acham o brasileiro tão alegre e simpático quanto dizem. Mas subindo até São Paulo, já se nota o porquê. Há mais abertura para puxar um papo, as pessoas são mais dispostas a manter contato umas com as outras. (Mas isso também nem sempre é bom. Em Recife, senti saudades da formalidade gaúcha quando um sujeito se apertou sem camisa e todo suado bem ao meu lado em uma van.) Um motivo para essa vida comunitária aparentemente forte em São Paulo pode ser o fato de todo deslocamento ser difícil. É preciso sair de casa com o dia planejado, não dá para decidir algo e sair na hora e fazer. Enquanto em uma cidade menor você faria cinco ou seis coisas num dia, lá se faz duas ou três. Não rende. Em uma semana de estadia, mal consegui ver dois ou três amigos. Sair do hotel de táxi é caro, metrô na praça da república à noite um tanto suicida. Talvez por isso os paulistanos sejam clientes fiéis de uma padaria, um bar, façam amigos nestes lugares. No hotel Artemis (N. da R.: construído nos anos 50 na Alameda Barão de Limeira, 44), morava um velho. Aliás, muitos velhos moravam nos hotéis em volta. Gostaria de ter entrevistado aquele senhor para o COL. Curiosidade em saber porque alguém mora em um hotel no Centro de São Paulo. Todos os parentes morreram? Brigas com a família? Simples vontade de morar sozinho? Será que ele tinha bebida no quarto, como eu? A primeira compra da semana foi uma garrafa de cachaça São Francisco e uma caixa de suco de limão adoçado, com que improvisava uma caipirinha. Ajudou a passar várias noites, especialmente a de segunda, depois de um desempenho pífio naquele dia de seleção para a Folha de São Paulo. Há anos e anos não era acometido de um desânimo tão grande. Problemas de se apostar todas as fichas em um objetivo. Beber caipirinha em um quarto velho de hotel, com um neon brilhando na janela e alguma porcaria na televisão. Minha vida se tornou um clichê noir durante uma semana. E o desânimo só passou depois de telefonar para a mãe. Primeira vez na vida em que faço isso, que me lembre. Funciona mesmo. Achava que fosse besteira de propaganda de absorvente. Mas o melhor mesmo foi o caráter de férias sociais. Não precisar conviver com ninguém conhecido. Iniciar relacionamentos puros, novos em folha, sem nenhum vício, nenhuma obrigação. É fascinante a ponto de dar vontade de se mudar para alguma cidade em outro continente, largar família e amigos e tudo o mais. Não que tudo isso seja ruim, nem que fosse mesmo deixar para trás. Mas há um componente atrativo em afirmar sua liberdade cortando laços com o destino - local onde nasceu, família, cultura - e dar uma destinação completamente diferente à sua vida. Um tanto de rebeldia adolescente, é certo. Escolher uma existência diferente daquela determinada pelo acaso. (As coisas que se pensa sozinho e sem ter nada a fazer, além de colocar a leitura em dia.) E, no entanto, senti um aconchego como há muito não sentia ao voltar para Porto Alegre. O apego ao local de criação não deve ser subestimado. Tomara que não atrapalhe, se realmente for morar na cidade grande. Marcelo Träsel é jornalista e colunista do e-zine Cardosonline.

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