A Drogaria Onofre da Sé e o Oscar
Parece que foi outro dia, mas já faz 15 anos que um filme inteiramente rodado na Grande São Paulo disputou o Oscar. Não se trata, é claro, de nenhuma das três produções nacionais indicadas recentemente para o prêmio de melhor filme em língua não inglesa, “O Qu4trilho” (ambientado no Rio Grande do Sul), “O Que é Isso, Companheiro?” (que recria o Rio de Janeiro nos anos de chumbo do regime militar) e “Central do Brasil” (que viaja do Rio ao interior do Nordeste).
Festejadas pela imprensa como se estivéssemos disputando final de Copa do Mundo, essas participações quase apagaram da memória do público o feito bem mais significativo de “O Beijo da Mulher Aranha”, que deu o Oscar de melhor ator a William Hurt e disputou o prêmio em outras três categorias: melhor filme, direção (Hector Babenco) e roteiro adaptado (Leonard Schrader, baseado no romance de Manuel Puig que inspirou também o musical atualmente em cartaz em São Paulo).

E olhe que a concorrência era pesada. “Entre Dois Amores” foi indicado para 11 categorias e ganhou em sete, incluindo melhor filme, direção (Sydney Pollack) e roteiro adaptado (Kurt Luedtke). O prêmio principal foi disputado também por “A Honra do Poderoso Prizzi”, “A Testemunha” e “A Cor Púrpura”.
Babenco teve como adversários dois monstros sagrados, John Huston (“Prizzi”) e Akira Kurosawa (“Ran”), além de Peter Weir (“A Testemunha”) e Pollack. Ou seja: ocupou um lugar para o qual Steven Spielberg (“A Cor Púrpura”) não foi indicado. E William Hurt bateu Jack Nicholson (“Prizzi”), Harrison Ford (“A Testemunha”), James Garner (“O Romance de Murphy”) e Jon Voight (“Expresso para o Inferno”). O filme lhe valeu também, entre outros prêmios, o de melhor ator no Festival de Cannes.
Na época, houve quem olhasse torto para “O Beijo da Mulher Aranha” porque era uma co-produção com os EUA e tinha como “autores” dois argentinos de nascimento (Babenco e Puig). Bobagem. Babenco é mais brasileiro do que argentino e, com exceção de Hurt e Raul Julia, todo o elenco era formado por atores brasileiros, bem como a equipe técnica. Hoje, o filme (disponível em vídeo) oferece também a oportunidade de conferir algumas paisagens da cidade na primeira metade da década de 80. A maior parte do filme, ambientado em um país sul-americano fictício, se passa na cela que Luís Molina (Hurt) e Valentin Arregui (Julia) dividem; essas seqüências foram rodadas nos estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo, e no Presídio do Hipódromo. Mas há também cenas de rua:
1. No filme de propaganda nazista que Molina conta a Valentin, alguns trechos não-identificáveis da cidade (com exceção do Palácio dos Campos Elíseos) viram Paris durante a ocupação alemã.
2. Molina e Greta (Patrício Bisso) vão comer em um restaurante típico do centro, com chão de ladrilhos e toalha quadriculada nas mesas. Depois, Molina e o garçom Gabriel (Nuno Leal Maia) andam por uma rua do centro em direção a um ponto de ônibus; ao fundo, ouve-se um forró.
3. Valentin e Marta (Sônia Braga) na sacada de um prédio de pastilhas do centro, em rua não identificável. Depois, Valentin encontra-se com um militante clandestino de esquerda, Américo (Fernando Torres), em uma estação de metrô da linha Leste-Oeste (as placas são cor de laranja); nas catracas, ele é preso pela repressão.
4. Molina sai da prisão, toma café em um bar e pega um ônibus da Viação Bola Branca; da janela, sobre um viaduto, observa o Parque D. Pedro 2º. Seu apartamento dá vista para o Minhocão. Faz contato por telefone com militantes clandestinos em outra estação de metrô, da linha Norte-Sul (placas azuis). E, na sequência final, cruza o Centro Velho, passando pela Ladeira Porto Geral, Catedral da Sé e Pátio do Colégio.
Na Sé, por onde as pessoas parecem caminhar tranquilas, ainda sem tanto medo de assaltos, pode-se ver um letreiro da Drogaria Onofre: “Remédios descontos até 20% na nota”. O país de “O Beijo da Mulher Aranha”, como se vê, fala português. (23/03/2001)
Sérgio Rizzo é jornalista e professor universitário, e escreve sobre cinema para a “Folha de S. Paulo” e para as revistas “Set” e “Educação”. E-mail: srizzojr@vento.com.br