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Para reviver um pouquinho do Centro visto pelos seus personagens.

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Rápidos flashes da cidade

O currículo de Fernando Bonassi é extenso. Nascido em 1962, escreveu "100 Histórias Colhidas na Rua" (96), "O Amor É uma Dor Feliz" (97), "100 Coisas" (2000), entre muitos outros livros e "trocinhos" --como ele gosta de chamar o estilo sintético, irônico e rápido de suas colunetas na Folha. No cinema, fez o roteiro do premiado curta-metragem "Viver a Vida", dirigido pela cineasta Tata Amaral. É de autoria dele também a adaptação para o cinema de "Castelo Rá-Tim-Bum", de Cao Hamburguer. Na área teatral, suas peças abragem "Preso entre Ferragens" (1990) e "Apocalipse 1,11" (2000). Tem muito mais além dessas obras. E vai vir mais ainda. Os futuros projetos compreedem a versão cinematográfica de "Estação Carandiru", com direção de Hector Babenco, e em breve também lança um novo livro: "São Paulo/Brasil", pela editora Dimensão. A obra traz 85 continhos sobre o cotidiano e o desespero humanos em uma grande metrópole como a nossa. Leia abaixo uma pequena amostra do livro. (31/03/2001) NOSSA ESQUINA
Espero por você na nossa esquina. Duro. Colado. Não vou me mover um milímetro que possa te confundir, causar qualquer desencontro. Esse poste... estou como naquele filme dos irmãos Marx, onde Harpo literalmente escora a casa em que apóia o braço. Hoje você vem. Não há razão pra que não seja desse modo. Ainda que ninguém nunca saiba, eu sei. Não estou assim porque você pode, eventualmente, faltar. É o contrário. Restam alguns minutos, mas hoje você vem. Meu estômago ainda vai continuar cozinhando no próprio suco. Até que você apareça. Até que sinta o nosso arrepio gelado, meu alívio. ESPERANDO
A segunda feira pega Fernando de joelhos, dinheiro esmagado espalhado pela sala, sem vergonha de rezar de braços abertos, rastejando em torno do telefone, chutando cadeiras, tropeçando em tapetes, queimando-se com velas, com uma meia escapando, aos prantos e barrancos, cantando as piores músicas, derrubando quadros toda vez que vai no banheiro, como um porco ao ver a faca, vomitando cigarros, sem banho, mijando fora, pisando em cacos de vidro, aspirando o cheiro agridoce da morte ridícula, esperando o chamado, um chamado, qualquer chamado. RADIAL LESTE
A Radial Leste tinha duas curvas e três cruzes no acesso à Penha. Nunca se soube a que mortes referiam e só se podia imaginar a razão de cada uma delas: as curvas eram inclinadas pro lado errado. Nada deliberado. Não se cortavam os morros na época. As ruas eram simplesmente jogadas em cima da terra. Então as máquinas tiraram as curvas da Radial e as cruzes foram soterradas. Acharam que a avenida poderia ter um nome e deram o nome de alguém. O nome não pegou, os acidentes continuam acontecendo, mas agora nos já temos certeza de quem e porque se morre. PORQUE HOJE É SÁBADO
Porque hoje é sábado, faz frio e o vento encana pelo vitrô mal coberto com saco de lixo. Porque hoje é sábado e esse jogo de começo de campeonato fica engrolado no meio campo, numa leseira desgraçada, sem gana de vitória. Porque hoje é sábado e todo mundo deita, fingindo que dorme ou implorando por um sonho contra os blocos empoeirados das paredes que nunca terminam. Porque hoje é sábado, acabou a cerveja, o vinho e Orlando não chegou no vinagre é que, maldoso, esfaqueia sem dó aquele queijo fedorento, como se fosse o peito de um conhecido. AUTO RETRATO DE REPÓRTER
Nunca fui esperto, mas ingênuo de falar da verdade também não. Nem sou Deus. Não ganho pra fazer tudo em sete dias. De fato só tenho poucas horas contra as rotativas que não hesitariam em me atropelar. Fico ligado com meu bloquinho diante das coisas que acontecem. Tudo tem dois lados, mas a reportagem é uma só. O dono do jornal quer encher os espaços ao lado dos anúncios? Ok! Quem sou eu pra lhe tirar o pudim da sobremesa? Me servirei dessas palavras como escritor, mas minha literatura não será mais que embrulho da carne morta dos açougues no dia seguinte. RECEITA DE BOM SENSO
INGREDIENTES: um ser humano, toneladas de grama, esperança e paciência. MODO DE PREPARAR: toma-se um ser humano bem pequeno em seus desejos mesquinhos e coloca-se uma grande quantidade de grama no chão (o ponto mais alto que a maioria dos indivíduos alcança). Em seguida, aproveitando o deleite proporcionado ao animal que saboreia as fibras, injeta-se doses cavalares de esperança. A paciência inocula-se gradativamente, mais para que o ingrediente anterior surta efeito. O resultado a ser servido não será grande coisa, mas quem está preocupado?

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