Coragem sob fogo
"How can I help you?" Foi com essa pergunta e um enorme sorriso que Lu Carvalho, 73 anos, me recebeu na sala de sua casa, no alto de Pinheiros, se desculpando pelo atraso em me atender. "Estava acabando de almoçar", disse com seu delicioso sotaque piauiense.

Reparei na prateleira cheia de porta-retratos com recordações de viagens, amigos e artistas como Roberto Carlos e Regina Duarte. "Essa do Roberto foi tirada durante um show beneficente que ele fez na creche onde trabalho. Esta outra tirei quando fui a Paris. Já viajei muito, visitei a Bélgica, Alemanha, Inglaterra. Estava na França durante a Copa de 98."
Lu estava maquiada e arrumada. Depois da entrevista, ia visitar sua irmã, que fica em uma casa de repouso perto dali. "Tenho uma vida bastante agitada. Além da creche, sou tesoureira do meu grupo de oração e trabalho no departamento de documentação do Colégio Santa Cruz, que providencia documentos para pessoas carentes." Lu faz natação e hidroginástica duas vezes por semana e caminha sempre que pode. Está participando de cursos de culinária francesa e italiana. Nos finais de semana, normalmente vai para casas de amigos no Guarujá, em Campos do Jordão ou no Rio de Janeiro. É ocupando seu tempo com essas atividades e tendo "muita fé em Jesus" que Lu preenche o vazio deixado pelas tragédias que pontuaram sua vida. Perdeu o pai aos 7 anos e a mãe aos 17. Seu casamento fracassou. Mas as passagens que deixaram marcas mais profundas foram sua presença no incêndio do Edifício Andraus, em 1972, e a morte do único filho, em 1987.
"No dia 23 de fevereiro de 72, eu estava de férias da Petrobras - cujo escritório era no Edifício Andraus (Rua Pedro Américo, 32, próximo à Praça da República) - e meu chefe me chamou para taquigrafar laudos, já que a pessoa que estava me substituindo não sabia realizar esse tipo de trabalho." Lu ficou na empresa até tarde naquele dia, mas não conseguiu terminar a tarefa.
No dia seguinte, estava novamente em seu escritório no 12º andar quando um colega entrou esbaforido e gritou que o prédio estava pegando fogo. Ela se lançou ao corredor e, pela janela de outra sala, pôde ver os rolos de fumaça refletidos no edifício vizinho.
"Ia entrar no elevador quando alguém me puxou dizendo que não poderia embarcar. Por meio de alto-falantes, os bombeiros davam ordens para a gente ir para o heliponto, no 29º andar. Encontrei uma colega e um engenheiro alemão e tentamos subir. Quando atingimos o 15º, umas pessoas estavam descendo aflitas, dizendo que o heliponto havia sido interditado, pois o piche do chão estava derretendo, tamanho era o calor."
Lu e os dois colegas voltaram para o 12o, esperando por um milagre. "Estava passando mal com a fumaça e o engenheiro tirou minha blusa, molhou com a água que os bombeiros jogavam e que entrava pela janela e colocou a blusa no meu rosto para eu conseguir respirar." No desespero, muitas pessoas tentavam pular para o terraço de um dos edifícios vizinhos, que era mais baixo do que aquele andar do Andraus, mas acabavam estateladas na calçada. Lu chegou a considerar a possibilidade de fazer o mesmo, mas foi desencorajada por seus colegas.
"Parecia uma guerra. O fogo, as explosões dos botijões das copas. Cheguei a pensar que morrer arrebentada seria melhor do que morrer queimada. Mas me lembrava de meu filho, que tinha só 3 anos, e pedia a Deus que me deixasse viver para que eu pudesse cuidar dele. Então, eu, minha colega e o engenheiro começamos a rezar o Pai-Nosso", conta Lu, que àquelas alturas tinha uma hemorragia, estava com a clavícula quebrada e com queimaduras pelo corpo causadas ao encostar nas paredes quentes.
Finalmente a escada Magirus chegou àquele andar. "Já estava muito fraca e, cada vez que tentava pegar a escada, alguém mais forte me empurrava e se salvava. Naquele momento era cada um por si." Amparada pelo engenheiro, conseguiu ser resgatada e foi para o Hospital das Clínicas. O terror não acabava ali. Lu carregou os traumas durante alguns meses. Passou a ter pavor de fogo, sirenes e tudo o que a lembrasse daquele dia. Ficou três meses em sonoterapia em uma clínica e depois freqüentou os cultos da filosofia oriental Seicho-No-Ie, o que a ajudou a superar seus traumas.
Em 1987, com a vida refeita e separada do marido, Lu Carvalho vivia com o filho Wilton - com quem se dava muito bem - e uma empregada. Wilton acabara de sair do Colégio Santa Cruz e ingressara no curso de engenharia da Universidade Mauá. "Era um menino inteligente, dedicado. Praticava rugby, capoeira, surf. Era um líder entre seus amigos, todos gostavam dele. Eu fazia de tudo para dar a ele um padrão de vida bom", lembra Lu, com os olhos embotados em lágrimas.
Numa madrugada daquele ano, Wilton voltava de uma festa no carro de um amigo. Garoava e o carro derrapou no cimento úmido, batendo no muro de um viaduto. Com a força da pancada, Wilton foi atirado para fora do carro, bateu a cabeça na calçada e morreu. "Na manhã seguinte, quando acordei e não o vi em casa, achei que tinha ido dormir na casa de um amigo. Ligaram para mim dizendo apenas que ele tinha sofrido um acidente. Quando cheguei ao hospital e soube a verdade, desmaiei."
Alguns dias depois, Lu foi levada a um grupo de oração e afirma ter visto Jesus com as mãos impostas sobre os ombros de Wilton dizendo "aqui está seu filho". A certeza de que ele ainda está vivo em outro lugar deu-lhe forças para continuar lutando. Até hoje, os amigos de Wilton reúnem-se de vez em quando na casa de Lu para jantar. O prato preferido da moçada é a lasanha que ela prepara. "Deus me poupou do sofrimento de ter um filho preso em uma cadeira de rodas, por exemplo, mas não me poupou da saudade. Hoje, eu vivo de fé."