"Não se trata de conservar o passado, mas de resgatar as esperanças do passado" (Adorno / Horkheimer)
Sentada na cadeira do delegado, uma poltrona giratória de couro puído, sob uma luminária cujo foco clareava apenas a mesa de madeira à minha frente, conversei com João Acaiabe no dia em que ele completava 56 anos de idade.
A ausência de luz fazia com que o ator parecesse mais expressivo do que já é quando conta as suas histórias. Me lembrei dos tempos em que assistia ao Bambalalão (programa exibido pela TV Cultura-SP nos anos 80). Só que, desta vez, não se tratava de contos sobre meninos e meninas. Mas sim, sobre histórias da ditadura militar.
Nas paredes de tijolo e parte do encanamento aparente, unidas pelo chão de cimento frio, as marcas de todo um período de opressão elevada ao seu grau máximo - em dez anos, cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos e sinopses de telenovela foram censurados. As celas e portas de ferro mantidas até hoje não nos deixam esquecer disso.
O prédio do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) era o lugar para onde eram levados todos os suspeitos de ações contra o governo militar: estudantes, atores, escritores, professores. Na época da ditadura, muitos foram presos e torturados. Hoje, as dependências do edifício são o palco da peça "Lembrar É Resistir", que estreou em setembro de 1999. João Acaiabe interpreta o Mão de Vaca, um dos agentes do DOPS, que mostra o edifício para a platéia.
"Fico muito feliz de poder participar desse espetáculo. Tem uma coisa - que só fui descobrir depois da Anistia - que é a de passar a bola sempre", diz o ator. "Não deixo de ter uma preocupação social - e é um grande prazer encenar essa peça, porque o teatro é atemporal", completa.
Nascido em Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo, Acaiabe veio para a capital em 1964. "Quando viemos para cá, já estávamos envolvidos com um grupo de pessoas mais velhas, que fazia um trabalho assistencial", diz. "No começo, morávamos em uma pensão em Pinheiros com o Valentim, hoje professor da USP. Nós conversávamos muito - essa foi a formação que tivemos", recorda. "Na época do golpe, já estávamos muito alertas."
"Apesar de nunca ter entrado no edifício antes da peça, João Acaiabe conhecia as histórias dos amigos. "Mas a primeira vez que vi o espetáculo, não conseguia ir embora", conta. Quando perguntado sobre a importância da preservação do edifício, Acaiabe responde com uma das falas do personagem Mão de Vaca, no final do espetáculo:
"É muito importante saber que este prédio nunca mais será usado para a prisão e tortura de pessoas. E essa não deixa de ser uma conquista de todos aqueles que sofreram. Contudo, este é apenas um pequeno passo. Ainda é preciso estar atento e forte." (25/10/2000)